12.12.12

beto

Beto, um dos meus irmãos, começou a ter autonomia aos quinze anos. Com dezoito já tinha carro próprio e uma energia sensual impressionante. Bonito, saudável, simpático, charmoso e elegante. Inteligente. E com dinheiro no bolso. E com uma bundinha arrebitada que até hoje é famosa entre as mulheres. Portanto, tinha tudo para ser o que realmente foi: um conquistador maior do que Alexandre, o Grande. Mas depois, numa das curvas da estrada da vida, lá nas Colinas de Golan, derrapou, e foi convencido a se casar. Ou melhor, um casamento enorme caiu-lhe na cabeça como um cofre despencando do vigésimo quinto andar. E não havia mesmo como safar-se, em vista de circunstâncias que agora não me cabe analisar. Era o destino errando no cálculo, como se costumava dizer naquele tempo. Casou-se — e foi um marido exemplar por vinte e cinco anos. Acontece que, para um tipo desses, amante da Liberdade, é impossível ser um marido exemplar por vinte e cinco anos — impunemente. É contraditório. Mas Beto foi realmente um marido exemplar. Só não sabemos ainda a que custo. Ninguém pode dedicar-se por tanto tempo a uma relação só — tediosa — e sair sem cicatrizes ou tristezas, traumas, hematomas...

Por isso eu vivia lhe dizendo para que saltasse profundo. Sempre recusou. Mas hoje, até que enfim, ele resolveu saltar. Só que escolheu a porta errada.

Morreu.






Beto morreu na madrugada de 12.12.2012. Ninguém me avisou que ele já estava há quatro dias na UTI...

Um dado histórico. Há oito anos, numa certa noite de outubro de 2004, fui visitá-lo num quarto de hospital em Sorocaba, SP. Ele havia sido internado devido a uma complicação qualquer. Conversamos muito, e ele me pareceu bem, embora triste. Na minha volta ao Guarujá, descendo a Serra, gravei um texto que, depois, revisado e publicado no blog Mude, ficou assim:


Eu tenho um irmão chamado Beto. Mas, para ele perceber que a Vida já lhe fugia pelo vão dos dedos, foi preciso que a Morte o visitasse algumas vezes. Claro que ele já poderia ter mudado há muito tempo, mas o medo e as falsas responsabilidades o impediam. Por anos e anos a fio, o coitado bateu ponto no Banco do Brasil, religiosamente. Nunca faltou. Nunca teve uma aventura. Nunca leu um livro meu. Nunca se desviou do caminho traçado por outros. Nunca teve um orgasmo fora de casa. Isto porque, antes de viver a própria Vida, disseram-lhe, ele teria que salvar o casamento, a família, a tradição, a propriedade, a camada de ozônio, a Mata Atlântica, o mico-leão dourado e o Sistema Financeiro Nacional. Quando ele ficava de saco cheio, davam-lhe mais um — vazio, e enorme... Fizeram-no quase esquecer como se vive. Trabalhava doze horas por dia, era o primeiro a chegar na seção. Um consultor agrícola competente — ou um modelo de peão, dependendo do ponto de vista. Mesmo quando parado, corria por dentro. Ele se achava indispensável. Vangloriava-se por se foder... Até que ontem à noite, deitado na UTI de um Hospital em Sorocaba, sozinho, de olhos fechados, teve um insight: ele era um homem realmente indispensável — mas indispensável só para si mesmo. Concluiu que o mundo não acabaria se ele morresse ali, estatelado entre tubos e agulhas. Se o seu coração parasse naquele exato momento, o mundo não cairia aos pedaços no fundo do abismo, como supusera por anos a fio. Todo aquele antigo excesso de esforço havia sido desnecessário, ele enfim concluiu. De certo modo, sofrera em vão. E agora a decisão crucial era mudar — ou morrer...

Acabou sendo salvo pela própria Morte.


Publico tal texto, novamente agora, porque esse foi um dos alertas que ele recusou-se a ouvir. Persistente, sobreviveu mais oito anos, sem saltar profundo e sem mudar a essência do próprio sufoco. Em verdade, naquela noite de outubro de 2004, Beto não teve nenhum insight. Fui eu que ardentemente desejei que ele tivesse. Aliás, ele detestava a expressão "saltar profundo". Eu e meus irmãos, irremediavelmente, somos diferentes. Somos muito diferentes...

Assim como não fui aos funerais do Paulo, também não fui aos funerais do Beto. Sou contra velar o corpo: prefiro velar a alma. A propósito, eis o que penso hoje sobre a Morte.